Psicoterapia Sensóriomotora – Quando as Palavras não Chegam

Na minha busca por ferramentas e conhecimento que possam ser mais eficientes e respondar com mais sucesso às necessidades e dificuldades da pessoa que recorre a ajuda psicológica, têm sido vários os caminhos que tenho experimentado. Comecei por explorar psicoterapia corporal, estudei várias vertentes (entre elas a Análise Bioenergética, cujos exercícios ainda hoje uso em diversos momentos), percebi a importância e eficácia em determinados processos, mas faltava algo. Posteriormente, segui o caminho da psicologia clínica tradicional, para no final sentir que também não bastava. Desde esse momento, a busca tem sido no sentido de integrar duas vertentes e trabalhar com ambas, em função das necessidades específicas de cada pessoa e situação.

Nesta busca, cruzei-me com a Teoria Polivagal de Stephen Porges e toda a informação preciosa sobre o impacto directo do Sistema Nervoso no comportamento e, particularmente, do nervo vago (sobre a qual escreverei brevemente), o conhecimento valioso de Deb Dana e, mais recentemente, com a Psicoterapia Sensoriomotora, de Pat Ogden. Finalmente, tudo o que parecia ser necessário e importante para o processo psicoterapêutico (pelo menos, na minha visão do que é o processo psicoterapêutico) estava ali, pensado, estruturado, fundamentado e posto em prática de forma clara e eficaz.
É uma completa mudança de paradigma mas é uma mudança necessária, que só peca por tardia.
Somos ensinados a sentar-nos e ouvir o outro, a trabalhar com o que os clientes trazem em palavras, recorrendo à sua memória autobiográfica, aos acontecimentos de que se lembram, ou seja, com as suas memórias explicitas. No entanto, com o tempo e com alguma experiência, apercebermo-nos que os clientes trazem com eles, na maioria das vezes, um tipo de sofrimento associado a formas de ser e de reagir a estímulos externos, cuja origem não está consciente. É, exactamente, aqui que começam os limites da psicoterapia pela palavra.
Porquê? porque no nosso comportamento diário, nas formas de nos ligarmos e reagir ao mundo, somos maioritariamente governados por memórias implícitas. Ou seja, aquilo de que não nos lembramos de forma consciente. Ora, se não nos lembramos, como poderemos falar sobre elas? Se não falamos delas, se não nos lembramos delas, como aceder a esse lugar de sofrimento e ajudar a curá-lo?

“Qualquer coisa que aumente, diminua, limite ou amplie o poder da ação do corpo, aumenta, diminui, limita ou amplia o poder de ação da mente.
E qualquer coisa que aumente, diminua, limite ou amplie o poder da ação da mente, também aumenta, diminui, limita ou amplia a ação do corpo.” Espinoza

O cérebro começa a funcionar logo desde a nascença, ainda que de forma muito limitada e sem todos os seus recursos desenvolvidos. Em cada fase, o cérebro vai desenvolvendo novos recursos e capacidades. Apesar destas limitações, sabemos que este é fortemente influenciado pelo ambiente e experiências vividas nestes primeiros anos. Essas experiências ficam gravadas em nós e são, tantas vezes, a raiz de dificuldades que acabamos por experienciar em adultos.

Numa fase em que ainda não é possível compreender, processar, elaborar os acontecimentos, vivemos experiências relacionais, emocionais, muitas vezes traumáticas, que ficam gravadas em nós numa fase pré-verbal. Estas memórias pré-verbais não podem ser levadas para o processo psicoterapêutico, uma vez que a parte do cérebro que grava essas memórias – o hipocampo – ainda não se encontra desenvolvida. Nas experiências traumáticas, por exemplo, as memórias são muitas vezes fragmentadas, o que impossibilita, por vezes, que o cliente possa falar das suas memórias traumáticas de forma coesa.
Sem essa percepção, as memórias passadas manifestam-se em nós através de reacções e comportamentos que, não raras vezes, não compreendemos. Na presença de alguém ou alguma situação que active uma memória pré-verbal, o organismo reage acedendo a essa memória implícita, mesmo que não nos lembremos do porquê de forma consciente. Assim, desenvolvemos padrões de comportamento que não entendemos, porque estamos impossibilitados de aceder a essas memórias implícitas.
Podemos falar de uma resposta de inexplicável irritação a determinada pessoa ou situação, ou de um medo irracional de algo que não conseguimos explicar. Activamos respostas físicas,fisiológicas, emocionais, que geram padrões de comportamentos, com os quais temos que viver diariamente porque, mesmo que não nos lembremos de forma explícita e autobiográfica, o nosso corpo lembra-se, as nossas emoções lembram-se.
Existem, claro, casos em que a nossa memória auto-biográfica acede a informação importante e nos permite falar sobre acontecimentos marcantes, mas ao agirmos apenas no campo das palavras, ao falar simplesmente sobre esses acontecimentos, podemos não chegar aos processos implícitos que estão na raiz do comportamento. O que se pretende, é aceder à memória experiencial, para poder resolvê-la. Não queremos permanecer apenas ao nível cognitivo e falar sobre ela, queremos aceder à experiência.
A Psicoterapia Sensoriomotora propõe uma abordagem que começa por trabalhar com os hábitos, com os comportamentos aprendidos, através do corpo, porque o corpo espelha de forma muito clara as nossas memórias implícitas.

Desenvolvemos hábitos de viver no nosso corpo, desde uma idade muito primária, em resposta à forma como experienciamos as relações, como fomos ou não cuidados, amados ou negligenciados.
Se alguém cresce num ambiente em que nunca se sente seguro, pode começar, desde muito cedo, a contrair o seu corpo, os músculos, desenvolvendo no corpo uma postura virada para dentro,numa tentativa de se proteger. Ao olharmos para o seu corpo em adulto, poderemos ver, por exemplo, alguém com uma ligeira curvatura nas costas e os ombros curvados para a frente, num movimento de protecção. Se alguém cresce num ambiente em que sente que tem sempre que ter sucesso em tudo o que faz, talvez sinta que o amor da família está condicionado a resultados e, como tal, é impulsionado a tentar ser o melhor em tudo o que faz. O seu corpo pode mostrar uma postura de estar sempre mobilizado para a acção, direito, ombros segurados em cima, pronto para o desempenho.
Na Psicoterapia Sensóriomotora, tem-se atenção à postura corporal, aos movimentos, aos gestos, às formas que o corpo vai tomando no sentido de se fechar, de se deixar simplesmente cair, de se mover para trás em defesa ou de se manter rígido e direito mostrando-se pronto para atacar. Este tipo informação é precioso porque estas reacções não são conscientes, são automáticas e podem conduzir-nos, directamente aos efeitos provocados pelas memórias implícitas. Porquê? Porque podemos não lembrar algo detalhadamente mas lembramos como nos fez sentir. Lembramos a sensação no corpo e, diversas vezes, activamos o sistema de crença que desenvolvemos numa fase muito primária.

Uma outra forma de entender a prática clínica na Psicoterapia Sensóriomotora é pensá-la em termos de processos bottom up ( de cima para baixo ) ou top down (de baixo para cima). Quando estudamos psicologia, de forma geral, aprende-se a trabalhar com a abordagem top down (de cima para baixo), o que significa que trabalhamos com a cognição, com o que o cliente pode trazer em palavras, porque se lembra. Mas isto não permite aceder às memórias implícitas, como já vimos anteriormente. Uma psicoterapia de abordagem Bottom up (baixo para cima) começa por trabalhar com o corpo, para ir descobrindo que informação, memórias, estão guardadas no corpo. No entanto, não é só com isto que se trabalha em Psicoterapia Sensóriomotora.
Existem vertentes de Psicoterapia Corporal que trabalham com abordagens Bottom up, como terapias mais corporais, massagens, ou yoga e são abordagens com muito potencial de transformação ao nível do corpo, mas deixam de fora um trabalho crucial ao nível das emoções e crenças. Uma terapia Top Down, aborda certamente o sistema de crenças, através de palavras e, algumas vertentes, chegam a trabalhar com processos emocionais. Mas não abordam os processos essenciais que estão gravados no corpo.
Na Psicoterapia Sensóriomotora, trabalha-se com ambas as abordagens e esse é o grande benefício. Trabalha-se Top Down com o que está explicito, com o que é lembrado e falado na terapia mas, ao mesmo tempo, trabalha-se Bottom Up, directamente com o corpo, através de movimento, da postura, da estrutura corporal, das expressões faciais, das sensações corporais, resumindo, com todas as formas que o corpo tem de armazenar memórias. Na realidade, integram-se ambas as abordagens, criando uma abordagem com um maior potencial de cura. A tal mudança de paradigma que me referi em cima.
Em vez de apenas falar sobre experiências ou sobre o passado, o cliente começa por aprender a perceber as suas respostas físicas e o que fazer com elas.

Pat Ogden, fala de um cliente que tinha sido educado numa família bastante conhecida do público e que, por isso mesmo, tinha recebido dos seus pais, desde muito cedo, uma mensagem directa quanto a não poder demonstrar emoções em público. Tinha que se mostrar sempre feliz. Isto era uma memória explícita, o cliente lembrava-se da informação e explicitamente das palavras que a mãe usava ao saírem de casa; temos sempre que fazer cara feliz ao sair de casa. Enquanto falava sobre esta memória e ao ser levado para as sensações do corpo, contactou com uma sensação no peito, que descreveu como se tivesse aço à volta do peito e uma sensação de rigidez, que descreveu como se fosse uma armadura que impedisse qualquer emoção de aparecer. Enquanto mantivesse essa “armadura” não lhe seria possível sentir qualquer emoção e era esse o motivo que o tinha levado à terapia; conseguir sentir emoção de forma mais profunda.
Mesmo quando existe uma memória explícita, queremos, ainda assim, trazê-la para o corpo, no sentido de ajudar o corpo a mudar e conseguir suportar uma nova forma de ser e estar. Quer lembremos ou não determinadas memórias, o corpo é indispensável na mudança do efeito que algumas das experiências passadas, de sofrimento ou mesmo trauma, ainda têm no presente e se manifestam em padrões de comportamento.
Na Psicoterapia Sensóriomotora, pretende-se que o cliente aprenda a perceber como o corpo responde ao mundo. Em vez de interpretar a experiência, o cliente foca-se nas respostas corporais e trabalha-se psicoterapeuticamente a partir daí no sentido de desenvolver novas formas de conseguir suportar o seu novo Eu.

Adaptado de “Wisdom of the Body”, Pat Ogden

2 Comentários

  1. Adriana Grandini Hunnicutt

    Gostaria de aprender mais sobre essa terapia

    Responder

Enviar um Comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Outros Artigos

Teoria Polivagal – A Ciência da Conexão e da Segurança

Teoria Polivagal – A Ciência da Conexão e da Segurança

A Teoria Polivagal foi desenvolvida nos anos noventa por Stephen Porges, que estabeleceu uma ligação entre a evolução do Sistema Nervoso Autónomo dos mamíferos e o comportamento social, realçando a importância das activações fisiológicas do organismo, na expressão de...