A obra de Jay Greenberg e Stephen Mitchell “Relações de Objecto na Teoria Psicanalítica”, 1987, é a primeira referência da chamada “viragem relacional” em Psicanálise. Emergiu, desde então e em torno do trabalho fundamental de Stephen Mitchell (1946-2000) e de toda uma geração de autores contemporâneos, um modelo teórico e clínico que viria a designar-se como “Psicanálise Relacional”.
A Psicanálise Relacional constituiu-se como uma alternativa ao “modelo pulsional” freudiano (modelo este que tem como pressuposto fundamental que a principal motivação humana é a gratificação pulsional, organizada pelo “princípio do prazer”, dando origem a uma conflitualidade inerente à vivência humana, entre o desejo e o interdito, entre a expressão pulsional e a sua repressão) e à ortodoxia psicanalítica (assente maioritariamente em concepções teóricas e técnicas restritivas, veiculando uma “autoridade” incontestável do analista e uma sua suposta “neutralidade” face ao paciente e criando um espaço em que duas “mentes isoladas” se encontram numa interacção eminentemente técnica).
O movimento relacional identificou e recuperou uma “linhagem relacional” desde as origens da psicanálise, desde logo ideias do próprio Freud e, sobretudo, de Sandor Ferenczi e da escola das Relações de Objecto e da Psicanálise Interpessoal, baseada na ideia de que é o contacto emocional e a relação com o outro a motivação essencial que inspira o desenvolvimento humano.
O desenvolvimento da clínica psicanalítica, o foco na relação mãe-bebé e os achados da observação do desenvolvimento infantil, vieram fazer emergir as teorizações relacionais.
Elas tornaram-se predominantes em várias escolas psicanalíticas, quer na Escola Britânica das Relações de Objecto onde prevalecem os nomes pioneiros de Melanie Klein (uma autora de “transição” entre os referidos modelos) e, já operando sob modelos abertamente relacionais, os autores do chamado “Grupo Independente” britânico, como Ronald Fairbairn ou Donald Winnicott e os autores da teoria da vinculação, como John Bowlby, quer na Psicanálise Interpessoal desenvolvida nos EUA, por autores como Harry Sullivan e Erich Fromm, entre outros – só para citar as correntes e alguns autores mais representativos da “alternativa” relacional.
A partir de Greenberg e Mitchell, que cunharam o termo “Relacional”, o modelo relacional foi ganhando cada vez mais consistência teórica e clínica, que não parou de se desenvolver e aprofundar até aos dias de hoje, por um conjunto notável de autores contemporâneos, “relacionalistas” e “intersubjectivistas”. Destaquemos Lewis Aron, Neil Altman, Jessica Benjamin, Frank Summers, Donna Orange, Robert Stolorow, George Atwood, Bernard Brandchaft, Philip Bromberg, Nancy Chodorow, Emmanuel Ghent, Owen Renik, Donnel Stern, Irwin Hoffman, Michael Eigen, entre muitos outros, incluindo os muito próximos, na vizinha Espanha, Joan Coderch, Ramon Riera, Alejandro Ávila Espada, Carlos Sutil, Rosa Velasco, Ariel Liberman…
Em paralelo às construções teóricas, desenvolveram-se, igualmente, desde Freud, duas formas terapêuticas na aplicação clínica da teoria psicanalítica, a psicanálise (propriamente dita) e a psicoterapia psicanalítica. A essência teórica é, fundamentalmente, a mesma e existem mais afinidades do que diferenças entre estas duas modalidades clínicas, mas, usualmente, a psicanálise desenvolve-se num contexto mais propício à emergência da associação livre de ideias, à expressão interior do paciente e a movimentos regressivos. O paciente em psicanálise está deitado no divã com o psicanalista fora do contacto visual directo e, por norma, o encontro terapêutico ocorre entre 3 a 5 vezes por semana. Já a psicoterapia psicanalítica desenvolve-se, usualmente, face-a-face e opera em 2 a 3 sessões semanais, admitindo mesmo 1 única sessão semanal. Para uma boa escolha, a realizar com o terapeuta, serão tidas em consideração as motivações do paciente e as necessidades decorrentes das problemáticas centrais, bem como as disponibilidades de tempo, de acesso e financeiras.
A Psicanálise e a Psicoterapia Relacionais são representadas, hoje, por uma imensa e crescente comunidade internacional de psicanalistas e psicoterapeutas de todo o mundo, associados principalmente pela IARPP – International Association for Relational Psychoanalysis and Psychotherapy, fundada em 2001, um ano após o desaparecimento de Stephen Mitchell. Este havia já fundado, em 1991, a revista científica de referência das perspectivas relacionais, a pujante Psychoanalytic Dialogues – The International Journal of Relational Perspectives.
Os diferentes pressupostos das linhas “clássica” e “relacional” têm enorme expressão na forma de encarar a clínica, com diferenças significativas (mais evidentes ou mais subtis) na construção do contexto analítico, na “presença” e atitude do psicanalista ou psicoterapeuta psicanalítico, na forma de reconhecer e acolher o paciente, na forma de experienciar a relação analítica e o desenvolvimento terapêutico.
O terapeuta “relacional”, face ao “clássico”, tende a ter uma atitude mais envolvida e implicada nas dinâmicas relacionais em curso, a ser menos interpretativo e mais vivencial, a dar mais atenção aos contextos externos (familiares, sociais, culturais, políticos) e ao seu impacto no mundo interno, a ser menos fechado e silencioso (o valor do silêncio é importante, mas contextual e não uma postura “típica”) e mais “parceiro” no trabalho a dois, co-construído entre duas pessoas. Apesar dos diferentes papeis e responsabilidades em curso, psicoterapeuta e paciente são duas pessoas. E uma pessoa a fazer a sua psicoterapia ou psicanálise precisa de saber, de sentir e experienciar que o seu terapeuta é, também, uma pessoa real – e não só um “terapeuta”.
O terapeuta relacional assume uma “ética da responsabilidade” face ao paciente e uma “confiança” básica nele e na sua sensibilidade e perspectiva. Mas não perde de vista a importância das dinâmicas inconscientes e do seu impacto na vida psíquica e relacional, e a importância de conhecer e compreender o “mundo interno”, as configurações relacionais implícitas e os “princípios organizadores” profundos de cada pessoa – no sentido de uma clarificação conducente à constituição de uma maior coesão e liberdade interiores e da fruição relacional e da vida.
O terapeuta relacional, ao pôr ao serviço do paciente a sua experiência, saber, sensibilidade e a sua própria e inerente subjectividade, não as sobrepõe às do paciente e à responsabilidade deste pelo seu próprio percurso, no sentido de se desenvolver como queira e possa. Mas este, ao escolher fazer uma psicoterapia psicanalítica ou uma psicanálise, tem direito a fazê-la bem acompanhado.
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